28.10.2007

Não alimente essa crueldade

Raimundo Marinho

Fui ao matadouro municipal, em Livramento de Nossa Senhora, fotografar as obras paralisadas. O sol inclemente das 13 horas, nesta região semi-árida, outubro de 2007, fazia arder minha calvície, mesmo protegida por um boné. O lugar era horrível: chão encharcado de sangue, pedaços de animais espalhados, muitos mosquitos, cachorros e urubus. Logo percebi que, escondida atrás das obras, ainda na fase de levantamento das paredes, a matança continua.

Trabalhadores emergiam das sombras, protegidos com chapéus e botas, quase todos portando uma faca. Olhavam curiosos para mim, ao ver que fotografava. Perguntei a um deles: “as obras estão paradas?”. A resposta: “é, pararam aí esses dias”. Outra pergunta: “você sabe por quê?” e a resposta, cheia de receios: “acho que foi falta de dinheiro”. “Continua matando boi, aqui...”. “Sim, continua”. “E aqueles ali, naquele corredor, são para matar amanhã?”. “Não. É agora de tarde. Matou uma parte de manhã e vai matar outra, agora”.

Depois disso, percebi aumento da movimentação. Havia um curral cheio de gado, ruminando inocentemente à sombra, enquanto um dos trabalhadores tangia algumas rezes para o local da monstruosidade, o abate. Então, não tive dúvida. Vão matar agora. Nessa hora, disse para mim mesmo: “não quero ver”. E caminhei na direção da saída. Disfarcei tirando mais umas fotos das obras paralisadas.

Pronto para sair, vacilei. Minha consciência abalou-se. Parecia o pobre boi que era conduzido para a morte. Por longos segundos, duelaram na minha mente o ser humano pensante e o repórter atuante. Um querendo ir embora, para não ver. E o outro desejoso de fotografar o ato ignóbil, egoísta e desumano. Venceu o repórter. Voltei. Tremendo, com medo de mim mesmo. A atmosfera no local era horrível. Tinha a parecença do inferno.

Posicionei-me em frente àquele palco desagradável e terrível. Alguém dizia: “Tá muito quente o chão. Joga água”. Veio outro alguém e jogou. Na frente de um grupo de rezes, no corredor da morte, um boizinho cinzento, de pequeno porte, esquálido (o animal é deixado sem comer por até 48 horas para esvaziar o tubo digestivo). Muitos gritos. Na frente do grupo de condenados, ele parecia pressentir o horror da morte. Resistia, fincava pé, escorregava.

Esforçava-se desesperadamente para voltar, mas o corredor estreito impedia o giro do seu corpo. Fez de tudo que podia, naquele espaço exíguo e miserável. Não teve jeito. Uma corda grossa, apoiada por argolas fixas no cimento imundo foi atada à sua cabeça. Por fim, foi forçado a vencer o corredor infecto e é atirado na arena mortal. Pedi perdão a Deus, pela minha impotência e covardia, e dei o primeiro “clique” na máquina fotográfica.

O cimento molhado e a corda pressionando a cabeça do animal para baixo não o deixava se equilibrar. Escorrega, patina, treme. Cai e levanta. Totalmente dominado, a corda lhe força a ajoelhar-se, equilibrando-se apenas nas pernas traseiras, abertas. Um dos carrascos estica ainda mais a corda e ele é forçado a esticar o focinho, roçando o maxilar no cimento quente. Nessa posição, expõe a testa em toda inteireza, completamente entregue e já certo do fim.

Um dos empregados do lugar, com a frieza de quem cumpre uma rotina que lhe parece corriqueira, levanta uma enorme marreta, de uns cinco quilos, e desfere o golpe fatal. O pesado ferro, preso a uma grossa haste de madeira, repousa violentamente, num baque surdo, na testa do animal, que se paralisa. Para sempre. No estertor do atordoamento, espuma forte e tenta se mexer, quando é definitivamente paralisado por outra marretada. O executor abandona a marreta e com uma faca afiada secciona a carótida do animal, enquanto outro empregado apara numa nojenta bacia de plástico o sangue que gorgolejava.

Uma vida, tão engenhosamente esculpida por Deus, na composição da sua obra indecifrável, é desfeita em questão de segundos, pela malfazeja mão do homem. E, naquele exato momento, o ato repugnante estava sendo repetido em milhares de lugares, no Brasil e no mundo.

Tudo isso para o regalo bestial do ser humano. Preparemo-nos, pois, para a aflição, o tormento, o horror e a angústia que advirão, um dia, com a resposta da natureza. Ela não deixa nada impune!