O Violêro da Casa dos Carnêros

Colaboração enviada pelo estudante Jadher Assunção (*)

Dificilmente as coisas resistem com o passar dos tempos. São costumes e valores morais que — com os anos — são postos por terra e substituídos por outros. Há quarenta anos, quem aceitaria o fato de o Brasil ter um presidente operário? De fato, algumas mudanças foram extremamente benéficas, como a volta à democracia e o enterro das arbitrariedades dos militares (mesmo assim, há quem prefira os milicos). Enfim, a postura da sociedade transformou-se, mas algumas alterações não foram motivo para comemorar.

No âmbito cultural, a produção geral decaiu bastante. Nunca mais fizeram música com a mesma qualidade e originalidade das composições e melodia dos artistas das décadas de 60, 70, e 80, por exemplo. Como é fácil perceber comentários nostálgicos de quanto foram bons os festivais de música e os álbuns lançados ano a ano ao comparar-se com a realidade atual. Entretanto, um artista passou incólume a tudo isso, não sofreu crise de identidade por causa das mudanças políticas (e nem por isso deixou de inovar) ou remodelou o próprio estilo para adequar-se à nova realidade. Trata-se de um dos poucos artistas atemporais de que se tem conhecimento no Brasil e — por q ue não? — no planeta. Pois quem nunca ouviu falar de Elomar Figueira Mello e se diz entendido de música, infelizmente, não passa de amador e de mais um inculto no meio daqueles que realmente não conhecem nada.

Não é preciso ir longe para conhecer a obra de um artista. No caso de Elomar, basta ir a Vitória da Conquista, lugar onde ele nasceu e de onde nunca saiu senão para apresentações. O local de origem do cantor influenciou muito em suas canções. Situada no sertão, Vitória da Conquista é uma cidade de grande porte que não perdeu algumas características de zona rural. Detém um frio de altitude muito intenso no inverno, época das festas juninas. Hoje, é o terceiro maior entroncamento rodoviário do Brasil, por onde passam centenas de cargas de vários lugares (aos poucos, adquire o aspecto de entreposto comercial entre o Nordeste e o Sul-sudeste). No passado, entretanto, era rota de passagem de tropeiros e c iganos e, um pouco mais recente, de retirantes. E antes da indústria carvoeira desgraçar pelo interior nordestino, o município era engolido pela caatinga e o prolongado estio que acompanha a vegetação. Essas características físico-demográficas influenciaram muito o jovem Elomar, um protestante que habitava as fazendas da família que outrora serviam de paragem para todo o tipo de gente. E ele, é claro, usou esses elementos simples da sua história para compor uma obra de grande valor, enquanto a maioria da comunidade artística das décadas de 70 e 80 recorria às substâncias psicoativas para achar inspiração.

Hoje, o “Bode” — como Elomar é conhecido — é um senhor de idade avançada e com problemas de saúde devido ao uso de cigarro-de-palha e de cachaça, este último um costume que não mais mantém. Contudo, o passar dos anos não lhe alterou a capacidade criativa e nem corrompeu o seu “modus vivendi”. A originalidade do artista que o torna inclassificável nos atuais padrões de cultura atrai admiradores de diversas classes sociais. E, partindo do perfil geral dos seguidores de Elomar, pode-se afirmar categoricamente: quem ouve Elomar ou conhece a obra integral dele ou nunca nem o ouviu. A maioria dos fãs de qualquer outro artista sempre desconhece alguma pass agem da sua vida e obra, o que, às vezes, atrapalha no entendimento de várias coisas acerca da opinião e conteúdo desenvolvidos em músicas. Em relação a Elomar, diz-se que ele está num grupo de artistas inalterados pelo tempo; não importa quando a obra foi construída, o tempo nunca a tornará defasada. Fazem parte desse seleto clube Beethoven, Chopin, Vivaldi, Mozart, Paganini e outras mentes brilhantes.

Mesmo havendo uma admirável quantidade de admiradores, muitas coisas de Elomar são desconhecidas. Todos pensam que o fato de o “Bode” não mais ter lançado um disco elucide o fim de uma carreira de mais de quarenta anos. De fato, é verdade que as músicas cancioneiras já não são mais produzidas há uns vinte anos. O lado cancioneiro de Elomar contém as canções que o tornaram popular e famoso tempos atrás. São do estilo “O Rapto de Joana do Tarugo”, “Faviela”, “Estrela Maga dos Ciganos”, “Dassanta”, Curvas do Rio”, “Arrumação”, “Clariô”, “O Violêro”, “Cantiga de Amigo”, “História de Vaqueiros”, a clássica “Campo Branco” e diversas outras composições. Os exemplos citados — como os demais que constituem tal parte da obra do artista — têm em comum diversos elementos temáticos que hoje são base de estudo entre os mais dedicados alunos de literatura do ensino médio até de teses de doutorado no Brasil e no mundo. Quem conhece, é nítido que todas as músicas são tocadas, principalmente, com o violão clássico. Algumas usam o instrumento exclusivamente. Integram também as canções a flauta transversal, violino e violoncelo. A princípio, pode parecer que a parte instrumental é carente, e alguns ousam dizer heresias ao comparar o ramo cancioneiro aos artistas puramente dotados de voz e violão. É um erro a afirmação, primeiramente, por causa das letras das músicas, que são infinitamente superiores ao material divulgado extensivamente na mídia atual. E, o mais importante, a simplicidade de um violão, nas mãos assombrosas de Elomar, é capaz de se converter, sozinho , numa orquestra sinfônica completa. São acordes extremamente complexos e uma sequência musical específica. Curiosidade: Elomar recusou uma bolsa de estudos para estudar com o grande mestre Andrés Segóvia, exímio violonista, a fim de se dedicar a construir o Sertão na poesia. A vaga, então, foi para um brasileiro sortudo — hoje conhecido por seu talento — chamado Turíbio Santos. Imagine se o “Bode” tivesse ido visitar Segóvia na Espanha...

Do ponto de vista acadêmico (limitado pelo autor deste texto), Elomar faz-se único no meio dos poetas de língua portuguesa por ser um artista polivalente. A análise de suas poesias e canções permite dizer que ele faz parte de várias escolas literárias como o Trovadorismo, Classicismo, Barroco, Arcadismo (ou Neoclassicismo), ao mesmo tempo. E incrível: a mais recente delas cessou as atividades há cerca de trezentos anos. O “Bode” conseguiu resgatar com perfeição o estilo dos poetas passados adequando o passado à sua realidade. Um exemplo é “Campo Branco”. Todo seguidor de Elomar sabe, pelo menos, a melodia. Na mesma letra, é perceptível a presença de quatro escolas literárias. A mais visível é o Arcadismo: Elomar exalta o fato de viver “pelas sombras do vale do ri Gavião”, distante da vida urbana, que é o princípio do “fugere urbem” — fuga da cidade — em ação. Depois, aparece, logo na primeira estrofe, o Classicismo e o principal elemento integrante dessa fase literária, o Antropocentrismo, quando o poeta expõe o lado interno do ser humano, suas aflições e fragilidade diante da grandeza do mundo como conteúdo principal dos versos iniciais:

(...)
“Todo o bem qui nóis tinha era chuva, era amor...
Num tem nada não...
Nóis dois vai penano assim
Campo lindo, ai qui tempo ruim
Tu sem chuva e a tristeza em mim”


Também, há a presença do Barroco, que é caracterizado pelo conflito entre Deus e o Homem pelo centro do Universo, presente integralmente na segunda estrofe. E, enfim, na última estrofe, o Trovadorismo aparece quando o eu-lírico cita, em linguagem própria, passagens da Bíblia anunciando tempos futuros melhores de forma profética. Quanto à tudo isso, resta uma única declaração de gente entendida: incrível.

Poder-se-ia afirmar, de acordo com alguns tecnicistas da Literatura, que Elomar também é autor do Modernismo, a fase contemporânea das atividades literárias, por causa da linguagem usada nas poesias, totalmente fora das regras da gramática (a norma culta). Elomar escreveu grande parte do cancioneiro em Linguagem Dialetal “Sertaneza” ou sertânica, que é uma corruptela do idioma português que, nos interiores nordestinos, deixou de há muito ser usado. O “sertanês” é tema de diversos estudos de etnolinguística e base para muitas teses de doutorado; e Elomar, como o máximo expoente dessa cultura esquecida, é roteiro obrigatório para os pesquisadores. Entr etanto, o uso da variante do português não tem a mesma intenção de artistas modernistas como Oswald de Andrade, o que, de maneira superficial, não permite ratificar que Elomar seja um modernista, mesmo que, também, toda a obra do “Bode” tenha sido concebida na vigência do Modernismo.

 

A vida desse artista singular é outra história à parte. Formado em Arquitetura, resgatou em suas fazendas (a Casa dos Carneiros, a Duas Passagens, situada nas barrancas do rio Gavião, e a Lagoa dos Patos) o estilo colonial das antigas casas-grandes. Avesso à vida urbana, ainda tem o costume de cuidar do próprio rebanho caprino e das atividades diárias de um cultivador de terras. Como ele disse certa vez, “minha vida é chiqueirar e pastorar, tangerino de ovelhas e bodes”. Sofre de doenças pulmonares devido ao uso de cigarro-de-palha, uma de suas características mais reconhecidas, e ocasionalmente, com moderação, engole de vez uma dose de cachaça daque las que bate diretamente no chão do estômago. Depois do projeto “Cantoria” — com a presença de Xangai, artista bem próximo a Elomar, Vital Farias e Geraldo Azevedo —, quando o “Bode” produziu pela última vez um disco com músicas do cancioneiro, o artista ficou recluso em suas propriedades e ausente dos palcos. Mas havia um motivo: ele agora está a se dedicar na composição de peças eruditas como óperas, concertos para violão, antífonas e até uma sinfonia. Conta com a participação do filho na interpretação dos trabalhos clássicos, o Maestro João Omar, excelente violonista e violoncelista. Em dezembro de dois mil e oito, no Teatro Castro Alves, em Salvador, fez um lançamento mundial de uma fração do seu trabalho, consolidando o início de um novo ciclo de apresentações ao público, notadamente iniciado pelos idos de dois mil e sete. Inclusive, nesse ano, Elomar mostrou ao público de Vitória da Conquista e de outras cidades representadas po r seus conterrâneos que ele ainda está na ativa, contrariando muitas hipóteses acerca até se ele ainda era vivo ou não. Ele reuniu na Casa dos Carneiros parceiros do seu estilo — Xangai, Saulo Laranjeiras e Décio Marques — para relembrar antigos sucessos, alguns sob nova roupagem.

Há uma tendência de entronizar Luiz Gonzaga — o Rei do Baião — quanto à sua poesia sobre o Sertão. De fato, as letras como “Asa Branca” descrevem com êxito o sofrimento oriundo da seca prolongada, a necessidade de se deslocar para o litoral ou aos centros urbanos como São Paulo em busca da sobrevivência, a angústia por deixar para trás as origens, a própria razão da existência. Contudo, é possível dizer que as composições de Elomar sobre o mesmo tema (Incelença Para Um Amor Retirante e, principalmente, Curvas do Rio) têm um caráter mais profundo pelo fato de colocar o que se passa no âmago do sertanejo e de relembrar algo há muito esquecido n os pensamentos da sociedade: o ser humano é pequeno diante da Natureza e das aspirações metafísicas interpretadas na Terra, no caso, em forma de catástrofes. É a recordação insistente de que não podemos ter o controle do planeta e, tal como todos os outros seres e coisas, somos regidos por leis naturais e não nos achamos — da forma defendida pela maioria — senhores delas.

Crítico ferrenho ao socialismo face aos preceitos religiosos e indiferente aos movimentos sociais, Elomar muito bem poderia ser mais um típico representante do agronegócio ou um ruralista insensível às causas ambientais. Inclusive, boatos de que este artista-fazendeiro seja membro da União Democrática Ruralista (UDR) — organização oposta ao MST — dificilmente podem ser desfeitos devido ao isolamento do “Bode”, que não permite confirmar ou negar algo. Entretanto, a arte de Elomar tem um engajamento sutil, mais filosófico que político, que hoje é motivo de estudo em algumas teses de doutorado. É o caso de “Tramas do Sagrado”. Trata-se de um álbum recente do artista , gravado em dois mil e oito, cujo perfil mais parece com um documentário acerca dos pensamentos do autor em vez de simples exposição de músicas. Para quem se interessa pelos assuntos abordados, o trabalho é uma obra-prima.

Elomar sempre redigiu textos sobre o Sertão. Ele vê a região de forma mais ampla que conceitos climatológicos ou político-sociais, tendendo com frequência a estereótipos grotescos. O “Bode” pretende a valorização da cultura sertânica pela criação do Estado do Sertão, uma entidade política baseada num território habitado por um povo de cultura homogênea. E, de fato, acontece isso no Sertão. A dinâmica das secas, as características físicas locais, os aspectos demográficos são semelhantes do norte de Minas Gerais até o Piauí. Contudo, tal cultura é negligenciada pela falta de representação política que permitiria uma melhor identificação da população com o próprio modo de vida. No caso da Bahia, por exemplo, a propaganda oficial divulga bastante o carnaval de Salvador, que é totalmente indiferente aos estilos de vida do “sertanês” e de outras regiões da unidade federal em questão. E a verdade é que o carnaval limita-se, quase que integralmente, à capital, enquanto no interior nordestino — o Sertão — os festejos mais importantes são as festas juninas. De que adianta, então, ser baiano se não há identificação com a Bahia? A proposta de Elomar é muito clara: dar autonomia, criar espaço, para o desenvolvimento e preservação de uma cultura com a representação política. Aliás, nos anais da Constituinte de 1988 está uma carta de autoria do “Bode” em que ele defende a sua sugestão. Vê-se por fim, que foi, se não reprovada, no mínimo, ignorada.

Quem tem ou já teve a vida marcada pela obra de Elomar sabe que a sociedade está acabando com muita coisa boa quanto às expressões artísticas. Pouco das barrancas do rio Gavião é do conhecimento dos jovens e, com o passar dos tempos, pode ser que nada desta cultura das entranhas do Brasil seja acessível às gerações vindouras. É bem capaz um estrangeiro divulgar Elomar na Europa e os brasileiros tomarem ciência deste artista pela mania de plagiar o modo de vida dos povos ditos superiores. É desse modo que não há valorização de Elomar e de tantos outros compositores e intérpretes como Xangai, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Zé Ramalho, Vital Farias, que por mais famosos que sejam, ainda são tidos como artistas regionais. Para melhorar a projeção deles, seria bom converter o regional para nacional. Se não pela via atual, deve ser por outra menos sufocante. A ideia pode parecer radical, mas caso não haja mecanismos para igualar a cultura sertânica — além de outras Brasil afora — com o padrão carioca para exportação, ou o Sertão morre ou “sai de casa”.

A maior inovação de Elomar é sua nova forma de arte. Em dois mil e oito, ele lançou um romance de cavalaria em forma de roteiro de cinema — um dos poucos elementos da urbe tolerados por ele. Além de tratar dos assuntos como a própria obra, ele desenvolve suas opiniões através de Sertano, o protagonista do livro. Intercalando do enredo, há momentos de diálogo entre Elomar com pessoas comuns da região dele e de renome nacional. De acordo com o autor, Sertanílias, o título da obra, é o início de uma trilogia, que possivelmente será lançada logo se levar em conta a produção intensa do artista nesses últimos anos.

Enfim, descrever totalmente um artista do galardão de Elomar Figueira Mello é muito difícil num doutorado, e quase impossível num artigo. Vários fatos, com certeza, ficaram de fora deste relato, como outros possivelmente também estejam incompletos. Na internet, por exemplo, o meio de comunicação em maior frequência de uso, pouco se sabe sobre o artista e, nos padrões da rede mundial de computadores, é tudo defasado por demais. Até Vinícius de Moraes já fez uma descrição exemplar do “Bode”, intitulando-o como Príncipe da Caatinga. Alguns diriam ser esse o desejo de Elomar ver concretizado o Estado do Sertão para que ele pudesse reinar e ajudar a consolidar a c ultura sertânica. Longe de qualquer utopia monarquista, a intenção é salvar um povo à beira de ser aculturado — ou seja, prestes a morrer. Como habitantes do Sertão, temos um trunfo admirável em mãos para nos representar antes a outras potências culturais do planeta. Além de uma vasta gama de cantores, compositores e artistas de excelente qualidade que serão representantes dessa “terra seca” nos seus respectivos âmbitos, Elomar já está qualificado para ocupar espaço entre os grandes sopros de vida da música erudita anteriormente citados, além de fazer parte da literatura da língua portuguesa desde as escolas mais antigas até as atuais


A poesia unida a uma melodia única não exerce no ser humano mais nada que uma fortíssima atração. Queria todos os lugares, fatos, coisas e pessoas serem cantados e versados por Elomar Figueira Mello, que tem o dom de dar por meio da palavra vida ao que ele descreve. Tão nobre quanto um príncipe de fato o faria. Além disso, há a capacidade, mesmo à distância, de unir pessoas distintas que têm como única característica em comum a admiração por Elomar. Parar para discuti-lo nunca é demais e afirmar que é perda de tempo é extrema heresia. Aliás, nenhuma palavra acerca do poeta-vaqueiro é em vão e nem será. Esse artista de perfil humilde, vaqueiro, com sua viola em mãos a percorrer os palcos do país, guarda no âmago o mesmo espírito de influência que outrora guiou, em diferentes setores da arte, Beethoven e Camões. Imaginar a miscelânea destes dois gigantes vivos até hoje na língua e na música não é difícil quando se percebe que um dia, pelo menos, alguém em sua simplicidade já tentou. E por mais que o tempo passe, enterre e revigore outras poéticas no próprio decurso, ali estará incólume “Dassanta”, as barrancas do rio Gavião, a Casa dos Carneiro, a quadrada das águas perdidas, “Cantiga de Amigo”, “Curvas do Rio”, antífonas, óperas, filmes, crônicas, canções e livros. Um dia, quem sabe, vão dar valor a tudo isso.
Pois assim é Elomar.

(*) Jadher Assunção (17), estudante do 3º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Raphael Serravale e do Curso Pré-Vestibular Gregor Mendel, Cidade de Salvador-Bahia