Artigo – 06.04.2013

O R. Despacho – Parte I

(Ou: As Abreviaturas do Olimpo)

Jorge de Piatã

Gente, se tem uma coisa que eu respeito e sempre respeitei é o tal do despacho. Seja o despacho de parição, o despacho de jagunço, o despacho de terreiro e, mais que todos estes, o r. despacho de magistrado.

A primeira lembrança que tenho da expressão “despacho” foi quando perguntei a Tia Nen se dona Generosa havia perdido o barrigão por ter tomado óleo de rícino demais. Ao que ela me respondeu: “deixa de bestagem menino, tu acha que uma boa parideira precisa de purgante pra despachar dois bacuris gordinhos de uma vez só?”. Aí, então, depois de muito matutar entendi que parir e despachar têm o mesmo significado. E a partir de então, este tipo de despacho, vênias ao alto, passou a merecer minha incondicional reverência pelo seu significado de eclosão e de renovação da vida!

Depois disso, enquanto eu passava pelo tempo, fui conhecendo sucessivamente outras modalidades de despacho. Como o famoso despacho de jagunço, por exemplo, que como todos sabem é o ato pelo qual o exercente deste ofício se incumbe de despachar sob encomenda, deste para o outro mundo, os indigitados que ousam incomodar os que têm o chicote ou a sacola de dinheiro – ou ambos – nas mãos. Deste despacho, quase sempre irrecorrível, com vênia ou sem vênia, só posso ter medo! Aliás, não só eu, pobre mortal, mas hoje em dia até mesmo o mais servidor e despachante dos magistrados (e neste caso também mortal), periga ser vítima desta modalidade de despacho final.

Na sequência, merece destaque o notório despacho de terreiro ou de esquina. Também conhecido como ebó, trata-se de artefato destinado a atar ou desatar, casar ou descasar, fazer ganhar ou perder (salvo no futebol da Bahia que, segundo dizem, ebó só garante empate), enfim fazer tudo ou desfazer tudo, menos os atos secretos, é claro, sobretudo se assinados por senador imortal (contra estes não existe despacho que possa dar jeito, neste mundo nem no outro, o mesmo acontecendo, mutatis mutandis, com as rr. sentenças vendidas, por serem também firmadas sob a mais secreta das convicções). Mas, no geral, desta categoria de despacho, por via das dúvidas, eu me acautelo e guardo respeito. Êh parrê mizifiu! Uf, uf, uf!

Ufa! E tem o despacho judicial, mais conhecido, data venia, como r. despacho. A este, ultrapassando reverenciosamente os limites do dever legal, dedico o mais indiscutível, incondicional e incomensurável respeito. Tanto que em meus ofícios e requerimentos, ao expressar as necessárias louvações a todo e qualquer r. despacho nunca ousei esquecer-me do respeitável “r”. da abreviatura de “respeitável”. E isso sem descuidar de anteceder ou seqüenciar esta r. e enobrecedora abreviatura com o acréscimo de muitas e máximas vênias ao seu v. (venerável ou venerando) subscritor, sempre sem economia das demais abreviaturas que se façam necessárias segundo as tácitas normas protocolares impostas pela pose da v. excelência rogada.

Afinal, enquanto o v. magistrado tem a prerrogativa de ostentar uma r. toga, o pouco v. advogado só pode vestir uma toga sem r. E é justamente por isso que nunca antes nos anais da jurisprudência deste País mortal algum viu um MM Juiz, ao apreciar o labor dos não tão vv. advogados, se referir a uma r. petição, ou a uma r. contestação, ou a uma r. impugnação, ou a quaisquer rr. embargos declaratórios! Como também jamais se viu um v. desembargador ou um v. ministro se referir a alguma r. apelação, ou a algum r. agravo de instrumento ou a uma r. sustentação! No caso das veneráveis autoridades judicantes, todavia, a realidade é outra. Tanto é assim que, mesmo em se considerando ser assaz compreensível a indignação do V. Ministro Peluzo ao tomar conhecimento da impensada afirmativa de sua colega, Ministra Eliana, de que existem bandidos que se escondem atrás de togas – notadamente para vender rr. sentenças – ainda assim a referência a cada uma dessas rr. decisões da lavra desses honoráveis bandidos inexistentes deverá continuar sempre sendo precedida da r. abreviatura, até mesmo no caso da sua improvável anulação. Ao contrário, o trabalho do advogado, por mais competente e honesto que seja, jamais será agraciado com a precedência do r., porquanto tal discriminação persiste por ser conforme a ordem natural das coisas. Afinal, a toga, quando trajada por advogados nos paços da Justiça, notadamente quando presididos por magistrados que se sabem imortais, jamais será indicativa de hierarquia, nem de mínima importância.

E, advogado que sou, volto a repetir debaixo da minha modesta insignificância, concordando data venia e reverenciosamente com o V. Ministro: Um absurdo! Blasfêmia, essa idéia de bandidos escondidos atrás de togas!... Quando muito, e apenas em tese, togas poderiam esconder MMºs Juízes que vendem rr. sentenças, mas esconder bandidos, nunca! E tanto não é considerado bandido o v. magistrado vendedor de rr. sentenças que, em sendo este desrespeitosamente flagrado, em vez de perder o cargo e ir em cana, Sua Exa. será, tão-somente, pronta e honrosamente premiado com uma bela e gorda aposentadoria que poderá até ser integral, mimo esse com o qual nenhum outro bandido destogado jamais poderá sonhar! Assim, se algum dia aprouver ao V. Ministro, por excepcional condescendência, admitir a existência, v. g., ao menos de um único magistrado vendedor de r. r. sentenças escondido atrás de uma r. toga, ainda assim a ninguém será concedido o direito de chamá-lo de bandido. Todos deverão, sim, venia concessa, chamá-lo de Exmo. Sr. Dr. Negociador Emérito de RR. Sentenças ou, alternativamente, Douto e Excelso Barganhador de RR. Sentenças.

E para dar a necessária ênfase à seriedade, à sacralidade e à transcendente importância das abreviaturas no Olimpo Judicante (deste excluídos evidentemente os juízes que se sabem mortais e apenas funcionários públicos), data venia, chegam a ser corriqueiras as situações em que a expressão de uma letra seguida de um r. pontinho se faz necessariamente imperativa. Para explicar exemplificando exemplifico: quando um advogado em presença de Sua Exa., sem tempo para se posicionar em distância regulamentar e compelido a tanto pratica o aliviamento dos irresistíveis gases que estão prestes a explodir em sua retaguarda, dir-se-á, então, que o descuidado causídico acaba de soltar um desrespeitoso peido, produzido sob impulso da mais injustificável falta de decoro. E, como tal, por se tratar de presunção juris tantum, salvo robusta prova em contrário, o temerário causídico será merecidamente apenado. Se contudo foi a v. autoridade judicante que peidou, certamente prevalecerá o r. entendimento juris et de jure (que não admite prova em contrário) de que sua excelência apenas exarou (ou exalou) uma r. flatulência, cujos motivos, por razões de foro íntimo, nem sequer estará obrigada a declinar aos circunstantes e muito menos a dar satisfa a qualquer mortal, por se tratar de mais um divinal privilégio dentre os elencados no magnífico rol dos que para suprir a lei são costumeiramente institucionalizados pelo onipresente espírito corporativo que impera no Olimpo Judicante. Inclusive para excluir seus excelsos pares – quando puxassacalizados – da proibição do uso de abreviaturas estabelecida para os mortais no parágrafo primeiro do artigo 169 do CPC. É o que constato com todo o respeito!

Aliás, com o maxíssimo respeito. Até porque paira sobre as nossas falíveis e mortais cabeças a advertência do mesmo V. Ministro ao asseverar que “permitir a pressão da opinião pública” em assuntos que envolvam o comportamento de magistrados, a exemplo de compra e venda de rr. sentenças, “...significaria um retorno à massa informe da barbárie, seria o suicídio da Nação.” Êta meu! Ao ouvir a enérgica admoestação me bateu um remorso da por...caria por ter ficado solidário, mesmo que apenas em pensamento, com a Ministra Eliana quando da sua impensada manifestação de indignação... Mea culpa, mea maxima culpa! Ai de mim! Tremo e peno de remorso por ter sido partícipe da formação dessa perversa quadrilha da opinião pública que, juntamente com a Ministra, está cometendo a atrocidade de instigar ao suicídio nossa pobre Nação enquanto ela dorme desprotegida em berço esplêndido!

(Jorge Soares de Oliveira, Jorge de Piatã, é bacharel em Direito pela UFBA, turma de 1969, inscrito na OAB-BA sob nº 3.401, com escritório na cidade de Brumado-BA, atuando, também, em Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas, Vitória da Conquista e Salvador)